Revisão
Abstract
Incontinência Anal
A incontinência anal é um problema comum, não obstante pouco discutido entre pacientes e médicos. Compreende a incapacidade de controlar a passagem de gases, líquidos ou sólidos pelo ânus, podendo constituir-se em uma condição incapacitante para o indivíduo acometido. Sua prevalência na comunidade é em torno de 2,2%, sendo 30% em pessoas com mais de 65 anos e 63% mulheres. fundamental a compreensão dos mecanismos anatómicos e fisiológicos da incontinência anal para sua correta avaliação e tratamento.IntroduçãoA capacidade de se manter continente aos produtos de exoneração, seja urina ou fezes, assume grande importância na vida em sociedade. Quando ela é perdida o indivíduo se retrai, cheio de vergonha, e se exclui do convívio com amigos e familiares, bem como de sua vida profissional. Não causa estranheza que sua real prevalência seja subestimada pela dificuldade do paciente em procurar cuidados médicos, principalmente nos indivíduos do sexo masculino. A continência anal depende de diversos mecanismos reflexos e aprendidos, e de um aparelho anatômico cólico, anal e esfincteriano saudável.Alguns pacientes podem conviver com perda ocasional enquanto outros se ressentem de qualquer perda do seu controle e isso deve ser considerado no planejamento do seu tratamento.Mecanismos de continência e etiopatogenia da incontinência analO tratamento mais adequado depende de uma compreensão real do problema, do quanto a situação incapacita a vida do indivíduo e de qual mecanismo de continência esta alterado.O conteúdo entérico formado a partir do alimento ingerido e em parte absorvido durante seu trajeto pelo trato gastrointestinal é dito bolo fecal quando está no intestino grosso. Chegando ao reto, este se distende e se adapta mantendo a pressão em sua luz em níveis baixos devido ã sua elasticidade, distensibilidade e complacência. Ocorre distensão progressiva até o nível em que o músculo esfíncter anal interno relaxe (reflexo retoanal inibitório) possibilitando o reconhecimento do conteúdo retal pelos receptores somáticos de tato, pressão, dor e temperatura da linha pectínea, levando ã percepção pelo indivíduo do estado de plenitude retal. Se o momento for socialmente aceitável, o indivíduo pode então relaxar conscientemente seu assoalho pélvico e o músculo esfíncter externo do ânus, retificando o ângulo anorretal e permitindo a defecação, ajudada ou não pela prensa abdominal. Se, por outro lado, o momento não for adequado, ocorre contração reflexa e voluntária da musculatura do esfíncter anal externo e assoalho pélvico, refazendo o ângulo anorretal com retorno do conteúdo ã ampola retal e nova adaptação. O desejo evacuatório cessa temporariamente até que um nível maior de distensão retal novamente deflagre o reflexo retoanal inibitório e o ciclo se repita.Devido à diversidade de elementos estruturais e funcionais participando da fisiologia da evacuação e da continência, a etiopatogenia da incontinência anal não poderia deixar de ser multifatorial. Alterações ou danos desses elementos podem ocorrer em situações de trauma, sejam obstétricos, cirúrgicos ou acidentais, doenças colorretais e anais, como hemorróidas, prolapsos, doença inflamatória intestinal e tumores, congênitas como spina bífida e megacolon congênito e de doenças neurológicas cerebrais, espinais ou periféricas. O profissional que se propõe a tratar doentes com incontinência anal deve tentar reconhecer a origem do problema, se no reto, no esfíncter ou nas vias de condução nervosa.A maioria dos pacientes com incontinência anal são mulheres idosas com história de partos vaginais difíceis e obstipação crônica sob o impacto da menopausa. Situações como essas, que acarretam esforços abdominais, principalmente se repetidos cronicamente, levam a um descenso perineal e estiramento do nervo pudendo, sensitivo para o canal anal e motor da musculatura anal, perineal e pélvica. No parto vaginal pode ocorrer lesão esfincteriana clinicamente reconhecível em 25% dos casos ou mais quando se utilizam estudos ultrassonográficos endoanais¹. São também causas . de lesão dos esfíncteres anal interno e/ou externo os ferimentos penetrantes e os traumas pélvicos, além dos procedimentos cirúrgicos. Uma cirurgia de fístula anal pode acarretar algum grau de alteração da incontinência em até 45%¹. Igualmente, a correção cirúrgica das fissuras anais pode exibir diferentes graus de lesão esfincteriana e, consequentemente, incontinência anal. As hemorroidectomias também não estão livres dessa desagradável complicação. Neste último caso, o mecanismo implicado pode envolver a perda dos coxins anais, que podem desempenhar papel importante na manutenção da pressão anal de repouso e na continência anal, além de eventual lesão esfincteriana. Alterações na capacidade retal e na sensação retal também podem afetar a continência. A complacência retal pode estar alterada em pacientes com retocolite ulcerativa, proctite actínica ou nos neorretos após excisão retal com conservação esfincteriana. A sensação retal provavelmente mediada por receptores de distensão nos músculos do assoalho pélvico pode ser afetada em situações de doença neurológica como demência, encefalopatias, acidente vascular cerebral ou problemas mais periféricos, como descenso perineal, impactação fecal, encoprese ou neuropatias e lesões medulares'. Uma situação muito comum é a da mulher cronicamente obstipada ou mesmo sem alterações significativas do habito intestinal, porém desejosa de manter evacuações diárias por ignorância ou motivos culturais, que acaba fazendo esforços excessivos e não produtivos com estiramento dos nervos pudendos, situação agravada por ocasião do esforço expulsivo em um parto normal mal conduzido. Eventualmente pode se somar a isso o uso abusivo de laxativos antracênicos que alteram ainda mais a inervação da parede do cólon com perda adicional de reflexos locais e piora do quadro de obstipação. Esse mecanismo perverso, com o impacto da menopausa pode culminar com o quadro de incontinência anal francamente instalado.Finalmente, o aumento do volume fecal pode exceder a capacidade de armazenamento do reto e levar ã incontinência anal temporária ou definitivamente. Constituem exemplos a síndrome de mal-absorção, as colites inflamatórias e infecciosas e a síndrome do cólon irritavel¹.DiagnósticoÉ imprescindível uma anamnese e um exame físico criterioso, sempre com muito cuidado para não ferir o pudor do paciente nem piorar questões de auto-estima eventualmente surgidas em decorrência da própria incontinência.São dados importantes o grau de incontinência, se a gases, líquidos ou sólidos, e sua eventual relação com alteração recente no hábito intestinal do paciente, a frequência dos episódios e seu efeito na sua vida cotidiana e de relação. Nesta oportunidade, pode-se lançar mão de questionários específicos visando a qualidade de vida e tentar padronizar a gravidade do problema em “scores” de incontinência, que também têm se mostrado úteis em comparações de grupos e de resultados de tratamento.É importante investigar associação com doença inflamatória intestinal, tumores, radioterapia ou doenças sistêmicas, como diabetes mellitus, e doenças neurológicas, como esclerose múltipla e acidente vascular cerebral.Durante exame físico é realizada a inspeção estática e dinâmica, além do toque retal e exame ginecológico. A inspeção estática pode-se detectar escoriação da pele, presença de resíduos fecais na área perianal e perineal, cicatrizes de procedimentos orificiais ou traumas locais e, eventualmente, ânus patuloso, constantemente entreaberto ou até mesmo uma cloaca verdadeira. Aqui também deve-se atentar a eventuais fístulas cuja secreção pode confundir-se com incontinência verdadeira, ou à presença de prolapso mucoso ou hemorroidário e procidência retal. A inspeção dinâmica exacerbam-se os prolapsos ou demonstram-se aqueles não percebidos anteriormente. Cabe a ressalva de que alguns prolapsos somente serão visíveis com o paciente em posição de cócoras ou sentado no vaso sanitário, não ocultando essa parte do exame se houver presunção.O toque retal pode trazer informações valiosas como massas tumorais, impactação fecal na ampola retal e o estado dos esfíncteres e músculos do assoalho pélvico em repouso e contração. O exame ginecológico avalia se há plolapso genital, uretrocele, cistocele ou perda ao esforço concomitantemente. Deve-se lembrar que é mais frequente a associação das que a incontinência anal isolada².Na dúvida, a capacidade de reter um enema de 100 ml de solução salina, procedimento facilmente exequível em consultório, acaba por mostrar se o paciente é efetivamente incontinente.A retossigmoidoscopia informa a respeito de eventuais doenças inflamatórias ou tumores no retossigmóide, indicando-se colonoscopia nos casos de alteração recente do hábito intestinal.O papel dos testes de fisiologia anorretal é o de definir e quantificar defeitos anatômicos, a função esfincteriana e identificar déficits neurológicos. Pacientes com graus iniciais de incontinência anal ou aqueles incontinentes por alterações óbvias da função intestinal poderão ser abordados de maneira conservadora e dispensados da avaliação fisiológica.Os testes de fisiologia anorretal incluem ultrassonografia endoanal, manometria anorretal, tempo de latência do nervo pudendo e defecografia.A ultrassonografia pode identificar defeitos dos esfíncteres anais interno e externo¹.A manometria anorretal quantifica déficits funcionais nos esfíncteres, a sensação retal e avalia a presença ou não do reflexo retoanal inibitório, já descrito. Usando-se um catéter perfundido por água obtém-se a medida do comprimento do canal anal funcional, a pressão máxima de repouso (que reflete o tônus do esfíncter anal interno) e de contração (que reflete a ação do esfíncter anal externo). Distendendo-se um balão acoplado ao catéter deflagra-se o reflexo retoanal inibitório, além de se avaliar a sensação retal, medindo-se o volume necessário para a primeira sensação detectada, a sensação de preenchimento retal e a capacidade máxima tolerada. A hipersensibilidade pode ser encontrada em doença inflamatória intestinal com baixa complacência e sensação diminuída em pacientes com diabetes, esclerose múltipla e megarreto¹.A defecografia estuda o esvaziamento do material de contraste do reto onde se aprecia o ângulo anorretal ou eventualmente prolapso retal interno ou externo, intussuscepção ou retocele.Questiona-se o real valor dos testes de fisiologia anorretal no manejo dos pacientes incontinentes. Foi demonstrado em estudos prospectivos alteração de conduta em 10% ao se comparar avaliação simples com testes de fisiologia anorretal em pacientes incontinentes¹. A presença de neuropatia do nervo pudendo pode não interferir na indicação cirúrgica de reparo esfincteriano, mas pode nos ajudar a aconselhar o paciente a respeito dos resultados funcionais que podem ser esperados no pós-operatório.TratamentoO tratamento poderá ser conservador ou cirúrgico. No primeiro caso, incluem-se medidas de manipulação dietética, uso de antidiarreicos ou formadores de bolo fecal e retreinamento do assoalho pélvico (biofeedback).Muitos casos de incontinência anal podem ao menos ser controlados com medidas simples, como restringir alimentos que podem causar diarreia, como, por exemplo, o leite de vaca nos pacientes intolerantes. Assegurando-se uma exoneração diária pode-se evitar perdas adicionais durante as atividades cotidianas do indivíduo. Nos casos de alteração da sensação retal, um bolo fecal bem formado pode desencadear sensação retal mais bem definida do que o conteúdo de fezes em síbalas. Por outro lado, o uso de supositórios de glicerina ou um pequeno enema matinal esvaziando o reto pode manter o paciente seco e limpo e livre de preocupações pelo resto do dia.O retreinamento (biofeedback) pode melhorar ou eliminar sintomas em até 70% dos casos3. Não se sabe quais pacientes responderão em relação aos diferentes tipos de incontinência anal e as diferentes etiologias esfincterianas. Aparentemente o biofeedback é mais útil nas incontinências de urgência, onde o paciente tem a sensação de desejo evacuatório porém não consegue segurar, do que nas incontinências passivas, onde o paciente sequer tem a sensação de que esta prestes a evacuar. No primeiro caso, mais frequentemente, o problema está no esfíncter externo do ânus, enquanto na incontinência passiva a lesão está no esfíncter interno do ânus3. Mesmo neste último caso, a lesão do músculo esfíncter interno do ânus pode ser compensada pelo fortalecimento do esfíncter externo do ânus3.O tratamento cirúrgico ê reservado para os casos de anormalidades anatômicas em pacientes com incontinência anal não responsiva ao tratamento conservador. Hemorroidas e fístulas anais devem ser adequadamente tratadas. O prolapso retal pode ser tratado por via perineal ou abdominal. Lesões dos esfíncteres podem ser corrigidas por procedimentos de reparo esfincteriano com esfincteroplastia e sobreposição muscular.Falhas no tratamento incontinência neurogênica ou defeitos anatômicos complexos poderão ser abordados por técnicas mais recentes como graciloplastia estimulada, esfíncter anal artificial ou estimulação nervosa sacral. Não obstante os avanços no diagnóstico e nos tratamentos conservador e cirúrgico, 'a derivação estomal ainda constitui a conduta mais adequada em alguns casos.Por fim, salientamos o aspecto preventivo, possível na maior parte dos casos, com a correta orientação na obstipação e no acompanhamento do parto, prevenindo-se lesões desnecessárias e efetuando o seu tratamento precoce caso ocorram, evitando-se danos nervosos. Cabe o mesmo comentário para as doenças sistêmicas, como o diabetes e a demência. Antes de se resignar e concluir que a incontinência ê quase obrigatória no curso do envelhecimento, principalmente se associadas a doenças sistêmicas, vale ressaltar que muito pode ser feito e, se a continência não for completamente restabelecida, ao menos pode-se oferecer uma substancial melhora na qualidade de vida.Downloads
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References
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Durkey P. Colorectal Surgery 1998;11:237-59.
Norton C, Kamm M. Outcome of biofeedback for fecal incontinence. Br J Surg 1999; 86:1159-63.
Published
2004-03-01
How to Cite
1.
Junior EM. Revisão. ESTIMA [Internet]. 2004 Mar. 1 [cited 2024 Dec. 22];2(1). Available from: https://www.revistaestima.com.br/estima/article/view/145
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