Atualização

Authors

  • Beatriz F Alves Yamada Doutora e mestre em enfermagem. Pós-Graduada em estomaterapia. Sócia e Diretora das empresas Enfmedic Saúde e Estomatech.
  • Vera Lúcia CG Santos Doutora e mestre em enfermagem. Pós-Graduada em estomaterapia. Professor Associado da Escola de Enfermagem da USP.

Abstract

Conhecendo o Índice de Qualidade de Vida de Ferrans e Powers

IntroduçãoDesde que a expressão qualidade de vida (QV) foi introduzida no setor da saúde, o número de instrumentos com o propósito de avaliar esse construto cresceu exponencialmente, principalmente nos Estados Unidos e na Europa. Esses instrumentos objetivam não somente fornecer dados quantitativos sobre a QV, mas também avaliar o resultado das intervenções realizadas, especialmente nas doenças crônicas1-5, fornecendo melhores evidências científicas para aperfeiçoar a prática profissional e buscar excelência no cuidado e tratamento.Os instrumentos de QV podem ter características genéricas ou específicas. Os genéricos podem ser aplicados em pessoas saudáveis ou com qualquer tipo de doença. Existe também a categoria de instrumentos genéricos relacionados à saúde. Os instrumentos específicos, como o próprio nome sugere, são destinados para determinadas áreas (trabalho, saúde) ou faixa etária6-9.Os instrumentos genéricos disponíveis em nosso meio, tais como da Organização Mundial da Saúde (WHOQOL) e o próprio Índice de Qualidade de Vida de Ferrans e Powers (IQVFP), aplicam-se tanto a pessoas saudáveis quanto àquelas com qualquer tipo de doença.Os instrumentos genéricos relacionados à saúde objetivam avaliar o perfil de saúde de pacientes com variados tipos de doenças. Têm-se como exemplos: o Medical Outcomes Short-Form Health Survey- SF-36, o Sickness Impact Profile - SIP e o Nottinghan Health Profile – NHP6-10, todos amplamente usados em nosso meio.Quanto aos instrumentos específicos relacionados à saúde, são focados e aprofundados em certa área de interesse, como determinada doença (câncer, AIDS, insuficiência renal etc.); problema (como a dor) ou para determinado grupo etário (crianças, idosos)6-9. Esses instrumentos são de grande utilidade na avaliação de modalidades terapêuticas, em ensaios clínicos, ou para captar as mudanças ocorridas com o tratamento8,9. Porém, apresentam como grande desvantagem, a impossibilidade de não poderem ser extrapolados para diferentes doenças, dificultando a comparação entre as mesmas9.Os instrumentos de avaliação de QV podem ser administrados tanto por entrevistas como por auto-aplicação (com ou sem supervisão), com vantagens e desvantagens tanto para um método como para o outro9. Baixos níveis de escolaridade e cultura geral conceituam-se fatores limitantes para a auto-aplicação.Concernente aos instrumentos específicos para pessoas com feridas, nos arquivos do Patient-Reported Outcome and Quality of Life Instruments Database – PROQOLID, hospedados na página de Internet www.proqolid.org11, encontram-se aqueles relacionados a determinadas feridas ou a doenças desencadeadoras de feridas crônicas, tais como: Leg and Foot Ulcer Questionnaire (LFUQ), para úlceras de pernas e pés; Diabetic Foot Ulcer Scale (DSF), para pé diabético; Charing Cross Venous Ulcer Questionnaire (CCVUQ), para úlcera venosa; Aberdeen Varicose Veins Questionnaire (AVVQ), para insuficiência venosa; Assessment of Quality of Life in Lower Limb Arteriopathy (ARTEMIS), Claudication Scale (CLAU-S), Edinburgh Claudication Questionnaire (ECQ), Prairie Vascular Disease Questionnaire (PVDQ) e Walking Impairment Questionnaire (WIQ) para serem aplicados em pessoas com doença arterial periférica.Além desses instrumentos, outros questionários foram publicados em revistas indexadas, tais como: Neuropathy-Specific Quality of Life Questionnaire (NSQOLQ), para portadores de neuropatia periférica em diabéticos12; Neuropathy-and- foot ulcer - Specific Quality of Life Instrument (Neuro Qol), para neuropatia e úlcera diabética13; Questionnaire Chronic Venous Insufficiency Questionnaire (CIVIQ), para insuficiência venosa crônica dos membros inferiores14; Freiburger Questionnaire of Quality of Life in Venous Disease (FLQA), para doença venosa15 e Quality of Life with a Leg Ulcer Questionnaire (QLLUQ)16, para úlceras de perna, entre outros6, 17,18 .Índice de Qualidade de Vida de Ferrans e Powers (IQVFP)O IQVFP foi desenvolvido, em 1984, pelas enfermeiras Carol E. Ferrans e Marjorie Powers19, docentes da Universidade de Illinois (USA), utilizando diferentes abordagens de pesquisa20-22.Os estudos para a elaboração do modelo conceitual de qualidade de vida tiveram início em 198222 em função da realização da tese de doutorado de Carol Ferrans, sendo divididos em duas etapas. Na primeira etapa, foi realizada uma busca na literatura a fim de encontrar o núcleo central mais congruente com a abordagem individualista, escolhida para desenvolver o instrumento22. Esse tipo de abordagem parte da premissa que somente o indivíduo poderá avaliar sua própria qualidade de vida, uma vez que diferentes pessoas valorizam diferentes coisas22. Assim sendo, dentre os núcleos encontrados, a autora adotou a satisfação com a vida, do qual derivou o conceito que fundamenta o instrumento, a saber: “qualidade de vida é sensação de bem-estar de uma pessoa, que deriva da satisfação ou insatisfação com as áreas da vida que são importantes para ela” 20.Na segunda etapa, foram adotadas três abordagens. Em um primeiro momento, objetivando determinar os componentes de uma vida satisfatória na ótica de quarenta pacientes em hemodiálise, as autoras desenvolveram uma pesquisa qualitativa utilizando um questionário com questões abertas, nas quais os pacientes deveriam imaginar e caracterizar a melhor e a pior possibilidade de vida22. A análise das respostas obtidas baseou-se na teoria fundamentada nos dados [grounded theory]22,23 e possibilitou identificar vinte e dois elementos relacionados com a melhor possibilidade de vida e dezoito com a pior22.A segunda abordagem dessa etapa do estudo constituiu-se de ampla revisão bibliográfica sobre QV, realizada no MEDLINE, CINAHL e no Psychological Abstracts, no período de 1965 a 1983, a partir da qual, as autoras relacionaram uma lista de dimensões de QV21,22.A associação dos dados oriundos da pesquisa qualitativa, realizada com os pacientes de hemodiálise, e da revisão bibliográfica, possibilitou a produção de uma relação de trinta e dois elementos de avaliação de QV em geral, além de mais três elementos adicionais específicos para os pacientes em diálise21,22.Os 32 elementos encontrados serviram para estruturar o IQVFP, em duas partes. A primeira destinada à avaliação da satisfação com a vida e a segunda, composta pelos mesmos itens, para avaliar a importância atribuída pelo indivíduo a cada item20,22, duplicando-se o número de questões a serem respondidas.A partir das abordagens, até então realizadas, as autoras desenvolveram uma versão específica para pacientes renais em diálise21 e outra genérica22, esta constituída da versão específica, em que foram excluídos os itens relacionados a pacientes com diálise.A clareza das frases, bem como a confiabilidade e validade dessas versões foram processadas em dois estágios. Primeiramente, a versão genérica foi aplicada em pessoas da população geral. Para compor esse grupo, foram convidados todos os estudantes de graduação em enfermagem de uma universidade, onde 53% (88) aceitaram participar do estudo. A seguir, a versão diálise foi aplicada, por meio de entrevista, junto a uma amostra de conveniência de 37 pacientes em diálise, que aceitaram participar do estudo. Os resultados do estudo das propriedades psicométricas do instrumento – ainda como um conjunto de itens, sem distribuição em domínios - acarretaram uma publicação, em 198521, cujos resultados principais, relacionados à QV geral, são: a consistência interna alcançou um coeficiente de alfa de Cronbach de 0,93 para os graduandos e 0,90 para os pacientes; as correlações entre teste e re-teste foram: 0,87 para graduandos (n=69), com intervalo de duas semanas, e 0,81 para pacientes (n=20), com intervalo de um mês. Para a validade de critério, as correlações foram: 0,75 para os graduandos e 0,65 para os pacientes21. As autoras consideraram essas análises confiáveis e válidas.Finalmente, a terceira abordagem da segunda etapa constituiu-se no agrupamento dos itens em domínios de QV22. A fim de determinar a natureza e o número de domínios, os dados obtidos foram submetidos à técnica estatística de análise fatorial exploratória22, em um novo estudo. Essa pesquisa foi realizada em 1989 - utilizando-se a versão diálise, composta de 32 itens e enviada via correio - a 800 sujeitos, randomizados de uma população de 2967 pessoas com insuficiência renal e pertencentes a uma unidade de hemodiálise, obtendo retorno de 349 questionários20.A análise fatorial resultou no agrupamento dos itens em quatro domínios inter-relacionados de QV: Saúde e Funcionamento (SF); Sócio-econômico (SE); Psicológico/Espiritual (PE) e Família (Fa)20,21. Ressalta-se que, ao final, a análise fatorial exploratória não foi realizada com a amostra total de 349 indivíduos, uma vez que houve perda de 126 casos, relacionados ao item ter trabalho/não ter trabalho. Além disso, houve perda de 68 casos de pessoas que não tinham filhos20.A confiabilidade foi analisada pela sua consistência interna, por meio do coeficiente alfa de Cronbach, com resultados considerados adequados (0,93 para o instrumento completo; 0,87 para o domínio SF; 0,82 para SE; 0,90 para o domínio PE e 0,77 para família) 20.Enfatiza-se que a validação principal do IQVFP foi, então, realizada junto a pacientes em tratamento dialítico, utilizando-se a versão específica e não a genérica do IQVFP.A versão genérica inicial incluiu dezoito áreas: cuidados com a saúde; saúde e funcionamento físico; casamento; família; filhos; estresse; padrão de vida; ocupação; educação; lazer; aposentadoria futura; paz de consciência; fé pessoal; objetivos na vida; aparência pessoal; auto-aceitação; felicidade em geral e satisfação em geral21. Essa versão possibilita avaliar a QV, tanto de pessoas sadias quanto com qualquer tipo de doença20-22 e, portanto, uma análise global do paciente sem, contudo, apontar as especificidades das enfermidades.Quanto aos escores de QV, uriundos da aplicação do questionário, a atribuição dos valores é feita por intermédio de uma escala do tipo Likert, de seis pontos, que varia de “muito insatisfeito” a “muito satisfeito” e de “sem nenhuma importância” a “muito importante”, respectivamente, para as partes de satisfação e de importância20,21.A obtenção dos escores é feita por meio da recodificação de todos os itens respondidos da parte de satisfação, subtraindo 3,5 de cada pontuação da escala Likert de seis pontos (1; 2; 3; 4; 5; 6) e compondo-se, assim, novos valores (-2,5; -1,5; -0,5;+0,5; +1,5; +2,5). A seguir, ponderam-se os valores resultantes pelos obtidos em cada item respondido, na parte da importância, e somam-se +15, a fim de obter-se um único e positivo valor em cada item20,21.Para gerar o escore total, é necessário fazer a somatória e dividir exatamente pelo total de itens ponderados. O mesmo procedimento é adotado para a obtenção dos escores de cada domínio3. Além do escore total do IQV e de cada um de seus domínios, é possível obter escore para cada item que compõe o instrumento, possibilitando a análise do item que apresenta melhor ou pior QV24.A variação dos escores é de zero (a pior QV) a trinta (a melhor QV), e um escore de corte não foi estabelecido pelas autoras3. Em alguns estudos24,25,26, categorizações foram propostas, mas não validadas.Além das versões Genérica e Genérica III, existem mais treze versões específicas: Câncer III, Cardíaca IV, Síndrome da Fadiga Crônica III, Diabetes III, Diálise III, Epilepsia III, Transplante de Fígado III, Esclerose Múltipla III, Nusing Home III, Pulmonar III, Lesão Medular III, Anemia Falciforme III, Acidente Vascular III (disponíveis em www.uic.edu/orgs/qli)1, mais recentemente a Versão Feridas27.A revisão sobre os estudos originais acerca do IQVFP permite concluir que, desde a sua criação, o índice sofreu modificações tanto na versão genérica como nas específicas. O instrumento genérico inicial apresenta 32 itens em cada parte, conforme publicado nos artigos20-22. A versão genérica, traduzida para o português por Kimura5 e datada de direitos autorais de 1984, possui 34 itens, embora sejam 33, uma vez que os itens relacionados ao trabalho são excludentes. A última versão, denominada genérica III e datada de 1998, possui 33 itens e, considerando o item excludente, são respondidos 32. Essa versão, traduzida por Silva e Kimura, em 2002, mas não publicada, é um aperfeiçoamento da anterior, tornando-a um pouco mais esclarecedora.ConsideraçõesO IQVFP tem sido adotado para produção de várias dissertações e teses realizadas na Escola Enfermagem da USP, com boas evidências de confiabilidade e validade. É um instrumento bastante sofisticado, desenvolvido com extremo rigor científico e possui centenas de publicações internacionais. Infelizmente, em nosso país a sua utilização ainda é restrita, possivelmente pelo desconhecimento de sua existência. Desse modo, esperamos que esse artigo possa contribuir com a disseminação do mesmo não somente para a realização de novas pesquisas como também para sua aplicação na prática clínica.


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Published

2006-09-01

How to Cite

1.
Yamada BFA, Santos VLC. Atualização. ESTIMA [Internet]. 2006 Sep. 1 [cited 2024 Dec. 22];4(3). Available from: https://www.revistaestima.com.br/estima/article/view/194

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