Artigo Original 1

Authors

  • Helena Soares de Camargo Pantaroto Enfermeira. Especialista em Saúde do Trabalhador e Administração Hospitalar. Pós-graduada em estomaterapia pela UNITAU. Enfermeira do Núcleo de Assistência à Pessoa com Deficiência da Secretaria Municipal de Saúde de Jundiaí, SP, Brasil.
  • Leila Conceição Rosa dos Santos Enfermeira. Especialista em Administração Hospitalar, Mestre e Doutor pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, Prof Titular da UniFMU e Gerente do Núcleo de Assistência à Pessoa com Deficiência da Secretaria Municipal de Saúde de Jundiaí, SP, Brasil.

Abstract

Disfunção vésico-esfincteriana: adaptações feitas pelos tetraplégicos e cuidadores às orientações do enfermeiro.

ResumoDiante do quadro da tetraplegia, a disfunção vésico-esfincteriana leva o tetraplégico a ser parcial ou totalmente dependente de um cuidador. Essa relação tetraplégico – cuidador - esvaziamento vesical, sofre alterações no processo de reabilitação. Neste estudo verificamos quais adaptações foram feitas pelos pacientes e seus cuidadores nas orientações recebidas no que se refere ao esvaziamento vesical e prevenção de complicações renais e urinárias. É um estudo retrospectivo feito através de entrevistas com 16 pacientes entre outubro e novembro de 2005, na cidade de Jundiaí, SP. As principais adaptações observadas foram: diminuição drástica na ingestão hídrica, abandono do cateterismo vesical intermitente; utilização do cateter urinário externo, desconsideração do volume urinário residual, abandono de medicações. Mesmo cientes dos riscos de complicações, estes indivíduos optaram por viver com menor nível de dependência possível. Embora o paciente seja estimulado a fazer adaptações durante o processo de reabilitação, o enfermeiro deve estar atento para que estas adaptações não se tornem deletérias.Palavras Chaves: disfunção vésico-esfincteriana, tetraplegia, reabilitação.AbstractVesicle-sphincteral dysfunction: adaptations made by patients and their caregivers from nurse’s orientations In quadriplegia, the vesicle-sphincteral dysfunction turns the quadriplegics partially or totally dependent up on a caregiver. Quadriplegic- caregiver- bladder emptying relationship is altered throughout the rehabilitation process. On this study, we o verified which adaptations were made by patients and their caregivers on the orientations received in regards to bladder emptying procedures and kidney and urinary complications prevention. This is a retrospective study carried out through interviews from October and November 2005, in Jundiaí, SP. The main adaptations found were: drastic decrease of water intake, IVC abandonment; external urinary catheters usage; not taking the presence of residual urine into account, interruption medications intake. Although aware of risks of kidney and urinary complications, these individuals consciously chose to live with the lowest dependency level possible. Rehabilitation nurse must be perceptive to notice individual and clinical characteristics, personal choice preferences and the utilization of bladder emptying methods within scientific parameters. Patients should be encouraged to made adaptations and the nurse must be alert to avoid these changes becoming deleterious to the patient.Key words: Vesical-Shpincterian Dysfunction; Quadriplegia; Rehabilitation IntroduçãoQuando uma pessoa é abruptamente acometida por um acidente ou violência, tendo como conseqüência uma lesão traumática na medula espinhal no nível das vértebras cervicais (tetraplegia), passa a viver uma situação nova e desconhecida. A falta de sensibilidade e motricidade abaixo do nível da lesão, juntamente com a perda de função sexual e controle dos esfíncteres, traz consigo a constatação de um corpo mudado. Essa mudança implica em perdas irreversíveis que terão que ser substituídas por outras formas de fazer ou de obter o que se pretende (1).Após a alta hospitalar, na medida em que o tetraplégico e sua família vão conhecendo uma nova realidade permeada por problemas físicos, emocionais, familiares e muitas vezes financeiros, vão estabelecendo estratégias das quais a adaptação se configura em um processo contínuo em que aprende a lançar mão para superar dependências e limitações.1Dentre as alterações fisiológicas, a disfunção vésico-esfintecteriana é uma das mudanças mais difíceis de ser administrada. Até a II Guerra Mundial, 80% dos soldados com lesão na medula espinhal morriam nas primeiras semanas vitimados por complicações decorrentes de infecção urinária. O esvaziamento urinário realizado através do cateter uretral de demora revolucionou o atendimento e a vida do lesado medular. Daí surgiu a proposta do cateterismo vesical intermitente, feito inicialmente com técnica asséptica, e atualmente adota-se a técnica limpa.2,3,4A proposta de tratamento a um tetraplégico visa a manutenção do estado clínico saudável e a prevenção de complicações5. Pela dependência funcional característica da tetraplegia, o cuidado com o paciente é delegado aos familiares. Dessa forma, entendemos que o tratamento proposto considere as possibilidades e limitações tanto do tetraplégico quanto dos cuidadores, preservando assim as relações familiares.Após orientação e treinamento dados pelo enfermeiro de como realizar o cateterismo vesical intermitente, o paciente e a família irão programar a execução de tal cuidado dentro das condições reais de seu cotidiano, da dinâmica familiar e com a técnica necessária.A dificuldade surge quando algumas adaptações colocam em risco a função renal e miccional do paciente. Assim, este estudo tem por objetivo verificar quais adaptações foram efetuadas a partir das orientações feitas pelo enfermeiro no que se refere ao esvaziamento vesical e prevenção de complicações urinárias.  2. Métodos2.1. Desenho do estudo: Estudo retrospectivo, quantitativo, realizado com pacientes tetraplégicos entre 2000 e 2005.  2.2. Local do estudo: Estudo realizado no Núcleo de Assistência à Pessoa com Deficiência da Secretaria Municipal de Saúde de Jundiaí que presta assistência multiprofissional ambulatorial e domiciliária à pessoa com deficiência física.  2.3. Casuística: Foi constituída por 16 dos 24 tetraplégicos inscritos no serviço, cujos prontuários apontavam como diagnóstico médico o CID (Classificação Internacional de Doenças) S-14, considerando ambos os sexos e todas as faixas etárias.Quinze (93,75%) tetraplégicos são do sexo masculino e 1 (6,25%), feminino. A faixa etária varia de 7 a 59 anos de idade, com média de 37 anos, sendo que as pessoas entre 50 e 59 anos representam 37,50% da população estudada, seguidas da faixa etária entre 20 e 29 anos (31,25%), com lesões compreendidas entre a terceira e a sexta vértebras cervicais (C3 a C6 ), sendo 87,50% com lesão incompleta.A etiologia mais freqüente refere-se a acidente de trânsito (37,50%), seguido por mergulho em água rasa (31,25%), e ainda por acidente cirúrgico, queda da própria altura e prática de artes marciais.2.4. Aspectos éticos: Os pacientes foram contatados por telefone, esclarecidos quanto aos objetivos da pesquisa, e para os que concordaram em participar, foram agendadas entrevistas no domicílio, com a presença do cuidador principal, entre outubro e novembro de 2005, ocasião em que assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, conforme determinação da Resolução 196/96.6As respostas foram anotadas pelas pesquisadoras em formulário próprio com os seguintes dados gerais: sexo, idade, cuidador principal, doença de base, início da doença, etiologia, ingestão hídrica, uso de medicação específica e ocorrência de infecção urinária nos últimos 12 meses. Passava-se, então, ao detalhamento de todas as ações que envolvem o esvaziamento vesical tais como: percepção de plenitude vesical, forma de proceder a “micção”; utilização de cateter de demora, tempo de cateterismo vesical intermitente, descrição detalhada da técnica utilizada, reutilização de cateter uretral, e em todas estas situações perguntou-se que tipo de auxilio necessitava, visto tratar-se de tetraplégicos.  2.5. Definições: As definições utilizadas neste trabalho estão de acordo com os padrões recomendados pela Sociedade Internacional de Continência.7- Tetraplegia: É o termo que descreve a diminuição ou perda da função motora e/ou sensorial dos segmentos cervicais, por causa da lesão de elementos neurais dentro do canal medular, resultando em redução da função dos membros superiores, tronco, membros inferiores e órgãos pélvicos. Tal lesão será considerada completa (C) na ausência da função sensorial e motora abaixo do segmento lesado, e incompleta (I) na presença de alguma função.8,9 Dessa forma ela é citada utilizando-se a primeira letra do segmento da coluna vertebral acrescida do nível referente à vértebra e do grau da lesão. Por exemplo, C3C significa lesão na medula espinhal na altura da terceira vértebra cervical de grau completo.- Cateterismo Vesical Intermitente - CVI: Consiste na introdução de um cateter através da uretra com a finalidade de drenar a urina da bexiga quando a micção espontânea e voluntária está comprometida. O CVI feito através da técnica limpa exige apenas a higiene das mãos e da região perineal / peniana e a introdução de cateter uretral, quantas vezes forem necessárias.4,7,10,11,12.3. ResultadosObservou-se que os 16 (100,00%) tetraplégicos são de alguma forma dependentes de um cuidador no que diz respeito ao esvaziamento vesical, sendo 11 (68,75%) totalmente e 5 (31,25%) parcialmente dependentes. Tal dependência foi demonstrada na execução, pelo cuidador, do CVI, na colocação e retirada do cateter urinário externo, no manejo com coletores rígidos de urina, na troca de fraldas, na higiene dos genitais e manobras de Crede.Com relação ao método que utilizavam para esvaziar a bexiga, cinco (31,25%) pacientes realizavam o CVI, cinco (31,25%) pacientes usavam cateter urinário externo, dois (18,75%) usavam fralda, um (6,25%) cateter uretral de demora e três (18,75%) apresentavam micção espontânea com manobras (piparote e Crede).A sensação de plenitude vesical foi relatada por 12 (75 %) pacientes, e embora seja um sinal importante para que providenciassem o imediato esvaziamento vesical, constatou-se que nem sempre isso ocorreu. Todos os pacientes e familiares (100%) referiram ter feito alguma adaptação ou modificação nas orientações recebidas, sendo a diminuição da ingestão hídrica a primeira delas (93,75%), chegando a volumes inferiores a 200 ml em 24 horas. A infecção do trato urinário referida nos últimas 12 meses foi relatada por sete (47,75%) pacientes, sendo que 4 (59%), tiveram três ou mais episódios.Dos cinco pacientes que utilizam a técnica do CVI, apenas um manteve ingestão hídrica adequada, uso adequado do anticolinérgico, intervalos adequados para o esvaziamento vesical e não apresentou infecção urinária nos últimos 12 meses. Os demais, além da modificação na execução do procedimento técnico (como uso de luvas, gaze estéril, anti-sépticos locais e até de seringa para aspiração de urina pelo cateter), apresentaram rejeição a diuréticos; abandonaram o uso da medicação anticolinérgica, aumentaram o intervalo de tempo entre os cateterismos, provocando com isso a presença prolongada de volume residual e ocorrência da incontinência por transbordamento. Esta situação os levou a lançar mão do uso de fraldas ou cateter urinário externo.4. DiscussãoQuando se fala em nível de independência e funcionalidade dos indivíduos tetraplégicos sabe-se que os que possuem lesão entre C3 e C4 serão dependentes para atividade de vida diária (AVDs), os pacientes C5 poderão realizar algumas atividades simples do cotidiano, por meio de equipamentos adaptados nas AVDs e os C6 (os pacientes com nível mais sacral de lesão encontrados neste estudo) poderão apresentar extensão ativa do punho, acompanhada pela flexão passiva dos dedos e oposição do segundo dedo com o polegar. Ou seja, uma preensão passiva que não lhes permite usar a pinça dos dedos para segurar um cateter ou segurar objetos pesados como um papagaio cheio de urina.13Embora na literatura alguns trabalhos indiquem a realização da cistostomia nos casos de tetraplegia antes da alta hospitalar, esta conduta ainda não é consenso entre os profissionais que atuam em reabilitação. No atendimento hospitalar durante a fase aguda do paciente vítima de trauma raquimedular, a visão de reabilitação raramente está presente, pois é um complexo contexto que envolve a qualidade de vida, a dinâmica na família, a escolha do cuidador principal, e o retorno à vida social.A assistência de enfermagem ao portador de lesão medular é uma área ampla que envolve desde a competência clínica até a compreensão individualizada, social, familiar e cultural do cliente.Dessa forma, o enfermeiro, ao deliberar a assistência sistematizada de enfermagem vai encontrar, no que se refere aos diagnósticos de enfermagem, intervenções e resultados14,15 relacionados à disfunção vésico-esfincteriana, fundamentais para o planejamento dos cuidados a essa população, sendo esses: - retenção urinária crônica relacionada à bexiga excessivamente cheia, que pode ser verificada quando, apesar do volume residual alto, o paciente opta pelo cateter urinário externo e acaba tendo uma “micção por transbordamento” com distensão vesical; - alto risco para infecção, relacionado à retenção de urina quando espaçam os períodos estabelecidos para o esvaziamento da bexiga através do CVI, permitindo com isso a presença de volume urinário residual;- alto risco para isolamento social, relacionado ao embaraço pela incontinência, que pode estar relacionado aos motivos anteriormente citados e também ao abandono do uso de anticolinérgico, medicação que o ajudaria no aumento da capacidade de retenção de urina na bexiga e conseqüentemente o espaçamento seguro dos CVI sem a insegurança de apresentar perdas urinárias indesejadas;- alto risco para controle ineficiente do regime terapêutico, visto que fazer o diário miccional com a ingestão adequada e programada de água, apresenta uma certa rejeição por parte deles e também porque o (re)treinamento da bexiga exige tempo e perseverançaAs alterações encontradas neste estudo referentes à técnica do CVI, fazem parte de um ritual instituído pelos cuidadores. Acreditamos que isso tenha acontecido porque as orientações passadas foram conflitantes entre os diversos serviços que os pacientes freqüentavam, como ambulatórios de especialidades, unidades básicas de saúde, serviços de fisioterapia e pronto - socorros.Muitas vezes, o intervalo dos cateterismos é prolongado porque o cuidador não está disponível naquele horário. Alguns pacientes sentem-se constrangidos por serem cuidados pelas esposas, repudiando o comportamento “materno” delas ao executarem o CVI, pois acreditam que possa interferir na libido. Optaram pelo uso de coletores de urina externos, mesmo sabendo da indicação do CVI por causa do volume residual alto.Os pacientes que evoluíram com micção espontânea (involuntária), pararam com o CVI sem orientação médica, não valorizando a possibilidade de manterem resíduo urinário alto. Pela dificuldade na realização do estudo urodinâmico de todos estes pacientes, esta constatação muitas vezes é empírica: passa-se o cateter após a micção para verificar o volume residual, embora o parâmetro não seja adequado por não conhecermos a capacidade vesical de cada um.A infecção do trato urinário é uma preocupação constante nos pacientes com disfunção vésico-esfincteriana, pois estão expostos a vários fatores de risco e desencadeantes. Mesmo sem a possibilidade de constatar neste trabalho, as infecções urinárias ocorreram, principalmente em pacientes que modificaram as orientações recebidas. Dentre essas alterações de orientação destacam-se:- a baixa ingestão hídrica e conseqüentemente baixo fluxo urinário, com presença de urina muito concentrada e extremamente irritante para a mucosa vesical; - prolongamento do intervalo entre os CVI além do estabelecido, provocando hiperdistensão da bexiga pelo volume urinário alto, o que propicia a instalação de infecção urinária, além da grande probabilidade de provocar refluxo vésico-ureteral, deflagrando eventos deletérios que desencadeiam uma cascata de complicações que prejudicam a função renal.Dessa forma, entendemos que os diagnósticos de enfermagem estabelecidos no atendimento aos pacientes norteiam todas as intervenções propostas, mas não garantem que tais metas sejam alcançadas. As respostas que os pacientes nos dão devem ser compreendidas, e o enfermeiro deve estar especialmente sensibilizado pelos motivos que têm levado esses pacientes a mudarem seu comportamento produzindo adaptações sabidamente deletérias para sua vida.Quanto à questão da adaptação, Roy16 enfatiza em sua teoria que o enfermeiro deve incentivar e promover respostas adaptativas influenciadoras de modo positivo no processo de reabilitação, entendendo a pessoa como um sistema aberto e adaptativo interagindo constantemente com o ambiente, tanto interno quanto externo ao indivíduo.5. ConclusãoOs resultados obtidos neste estudo nos apontam para adaptações perigosas e inseguras tais como diminuição de ingestão hídrica, não aderência ao anticolinérgico prescrito, uso indevido de cateter urinário externo ou fralda em detrimento ao cateterismo vesical e até mesmo o prolongamento excessivo do intervalo entre os mesmos.6. Considerações finaisPelo aspecto dinâmico que o processo de reabilitação apresenta, as orientações feitas pelo enfermeiro devem considerar os aspectos clínicos e técnicos do tratamento da disfunção vésico-esfincteriana respeitando o contexto social e familiar do paciente.Quando relatam ao enfermeiro as adaptações que conscientemente fizeram no autocuidado, e são advertidos do perigo que isso representa, se afastam do serviço. Apesar de saberem dos riscos de complicações renais, os tetraplégicos deste estudo decidiram viver o presente com o menor nível de dependência possível.


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Published

2016-03-23

How to Cite

1.
Pantaroto HS de C, Santos LCR dos. Artigo Original 1. ESTIMA [Internet]. 2016 Mar. 23 [cited 2024 Dec. 22];4(4). Available from: https://www.revistaestima.com.br/estima/article/view/23

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