Revisão

Autores

  • Vilma Madalosso Petuco Enfermeira Estomaterapeuta. Professora Titular. Curso de Enfermagem da Universidade de Passo Fundo (UPF). Doutora em Saúde Pública.
  • Cleide Lavieri Martins Enfermeira. Doutora em Saúde Pública. Docente da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.

Resumo

A Problemática e o Enfrentamento da Pessoa Estomizada com CâncerProblems and Coping Strategies of Ostomy Patients with CancerResumoOs conteúdos apresentados nesse artigo enfocam a problemática que envolve a pessoa com câncer e com um estoma definitivo, desde a suspeita e o impacto da confirmação do diagnóstico até a realização da cirurgia. Com vistas à reflexão, trata, basicamente, das conseqüências e alterações trazidas à vida das pessoas que se defrontam com a situação, através da busca bibliográfica a respeito do tema.Palavras Chaves: Doença Crônica. Estomia AbstractThis brief literature review seeks to clarify issues involving cancer patients with a permanent stoma, from the suspicion of a problem and impact of diagnosis, to the surgical intervention. Basicaly, we tried to focus on the changes and consequences brought to the life of people who face this situation by searching for specific literature on this topic.Key words: Chronic Disease. Ostomy.             IntroduçãoAo escrever este artigo partiu-se da premissa que toda pessoa tem um lugar no mundo, resultado de um processo que vai vivenciando ao longo dos anos, enquanto incorpora, dia a dia, experiências e situações, ao mesmo tempo em que atribui significado a essas experiências que vão reconfigurando sua vida. Ao enfrentar uma doença grave, como o câncer colorretal, muitas coisas são revistas, ampliadas, reduzidas, ou modificadas, de acordo com a posição que a pessoa ocupa naquele momento específico de sua existência1.Desse modo, a partir da tese de doutorado, fizeram-se algumas reflexões acerca da problemática enfrentada pela pessoa estomizada.A presença do câncerA palavra câncer, por si só, é sobrecarregada de significação e está sempre associada à dor, sofrimento e mutilação2. A presença do câncer é suficiente para causar um choque, sendo mais intenso quando associado a um estoma, de tal modo que pode influenciar, decisivamente, o futuro dos atingidos.Se, por um lado, os progressos resultantes dos avanços técnicos e científicos, na área da saúde, proporcionam tratamentos terapêuticos e cirúrgicos que aumentam o número de anos vividos, por outro, muitos dos métodos utilizados, embora sofisticados, são extremamente agressivos e lesivos ao organismo, prolongando a vida, mas aumentando o sofrimento. Na presença do câncer colorretal, as pessoas geralmente são submetidas a cirurgias mutiladoras amplas, e a tratamentos com muitos efeitos colaterais, justificando o terror manifestado ao tomarem conhecimento do diagnóstico. As conseqüências resultantes podem ser tão graves e, em alguns casos, tão ineficazes, que toda a situação é revista pelos familiares e pela equipe de saúde, com o objetivo de planejar como o problema será conduzido3.Conviver com o câncer colorretal e sua conseqüência - o estoma - implica em percorrer uma longa trajetória, enfrentar e se adaptar às inúmeras alterações ocasionadas pela desestabilização que a situação provoca: as manifestações emocionais, a presença da dor, a alteração no corpo, o presságio da morte, a alteração na identidade. É preciso ainda tomar decisões e fazer escolhas que afetam as relações consigo mesmo, com a família, os amigos, vizinhos e colegas de trabalho.Ao se defrontar com tal situação, as pessoas não sabem o que acontecerá com elas no decorrer da doença e passam a viver um período de incertezas e preocupações. Que rumo a doença tomará? O tratamento dará certo? Atingirá outros locais do organismo? São alguns dos questionamentos que influenciam concretamente a vida dos doentes e seus familiares, podendo ocasionar mudança de projetos ou simplesmente levá-los a desfrutar dos momentos presentes4.Ao optar pela realização da cirurgia, está em jogo a vida do doente, pois não sendo assim, as chances de sobreviver diminuem. Não é uma opção pelo estoma, mas uma opção pela vida. Nos momentos que precedem a cirurgia, ele pode até apresentar-se emocionalmente contido, passivo, cooperativo, mas intimamente estará, com certeza, sentindo medo da morte. Um sentimento de alívio se manifesta depois da operação, embora a situação de temor e ansiedade continue presente, à vista do desconhecido. O período pós-operatório pode ser bem difícil, devido às crises de desespero e angústia e à consciência da mutilação, que conduz à perda da auto-estima e da vontade de viver. O retorno para casa é sempre marcado de muita expectativa e de apoio contínuo, especialmente do cônjuge, dos filhos, amigos, parentes e da equipe de saúde, que inicia o processo de adaptação e autonomia da pessoa estomizada5.O aumento nos índices de sobrevivência das pessoas com câncer, como resultado dos inúmeros avanços, desde o diagnóstico até o tratamento e a reabilitação, fez com que surgisse uma nova categoria de indivíduos, denominados de sobreviventes do câncer, cuja definição, fornecida pela National Coalition for Cancer Survivorship (NCCS), é a seguinte: "aquele que vive com, através e além da experiência do câncer". E acrescendo o aspecto da temporalidade, "desde o momento da descoberta, e para um balanço de vida, um indivíduo diagnosticado com câncer é um sobrevivente". Assim, de um lado, a pessoa pode encontrar-se com a possibilidade de conduzir uma vida normal ativa; de outro, a possibilidade de uma vida impregnada pelo medo e a insegurança faz com que permaneça num continuum "saúde e doença" (grifo nosso), que varia do medo à esperança6.A presença do câncer e do estoma provoca importantes modificações na rotina de vida da pessoa e ao prejudicar o seu convívio social causam sérias repercussões em sua qualidade de vida, especialmente após os primeiros meses7,8,9.As repercussõesMesmo quando o caso tem um bom prognóstico, pode o doente passar por momentos em que considera sua vida sem sentido, enfrentando sérios problemas psicológicos e emocionais. Frente às situações adversas convêm adotar estratégias de enfrentamento, na tentativa de renegociar e dar uma certa "ordem nas diferentes esferas da vida social", sobretudo na principal delas - a vivência de um senso de normalização. Para que esse senso de normalização seja mantido, são necessários determinados arranjos, que nem sempre serão fortes e duradouros4.Pode ser que alguns doentes optem, espontaneamente, por enfrentarem sozinhos os problemas que surgem, enquanto outros são obrigados a fazer isso. Porém, a maioria das pessoas apóia-se e necessita da rede social circundante para manejar sua situação, especialmente os que lhe são mais próximos, os familiares, que constituem o "núcleo resistente" à frente da situação, muitas vezes assumindo integralmente as responsabilidades. O suporte social (todas as outras instâncias que podem oferecer ajuda, seja no sistema oficial ou não) tem a função de fornecer bem-estar psicológico à pessoa, além de resolver outros problemas que podem surgir na trajetória4.A pessoa portadora de câncer ainda pode enfrentar a discriminação social, devido ao baixo nível de informação de parte da população brasileira, que ainda pensa que a doença pode ser contagiosa. Por outro lado, a postura e reação das pessoas e seus respectivos familiares, ou mesmo de amigos e parentes, podem variar "da mais completa tolerância à maior intransigência". O enfermo também pode passar a controlar a família, porque encontra justificativa no seu sofrimento para impor sua vontade e, assim, obter ganhos secundários. Por sua vez, a família pode tornar-se excessivamente protetora ou generosa, fazendo com que a pessoa se sinta sempre em dívida com ela10.Devido à presença do estoma, o indivíduo pode sentir-se diferente dos demais e ter que administrar esta sensação. Goffman11 identificou três estratégias utilizadas pelas pessoas estigmatizadas, ao se defrontarem com as tensões criadas no contato com os outros, os "normais": esconder sua situação para ser aceito como normal, fornecendo informações que não lhe tragam prejuízo; procurar reduzir ou minimizar o estigma, sem negá-lo, através de disfarce e outros modos de encobri-lo ou acobertá- lo; entrar em isolamento social, afastando-se de suas atividades e do contato com os que são considerados normais.O enfrentamentoNesse contexto, desde que possam ser sustentados psicologicamente, os estomizados, na interação face a face, vão utilizando estratégias e formas de ajustamento que lhes permitam adaptarem-se à nova situação.Outros fatores que contribuem para uma melhor ou pior adaptação do estomizado são o suporte emocional da família e dos amigos, estimulando-o e incentivando-o a recorrer a sua força interior, traçar novos objetivos de vida e buscar novas metas. O apoio social é fundamental para a reabilitação da pessoa, pois permite que novas decisões e posturas sejam adotadas mediante o evento da doença e da estomia8. Entretanto, depende de cada pessoa manter uma atitude negativa ou uma projeção positiva para o futuro5.A qualidade do cuidado dispensado pelos familiares dependerá da qualidade dos relacionamentos anteriores, já que a situação introduzida é nova, mas num contexto de relações previamente estabelecidas. Relacionamentos fragilizados anteriormente podem ser rompidos, ao passo que os relacionamentos sólidos possibilitam o crescimento de sentimentos de confiança, amor e companheirismo. Não é o estoma que pode destruir as relações, mas sim, a percepção da auto-imagem, da auto-estima, a valorização pessoal e a qualidade das relações é que determinam seu futuro5.Não se pode deixar de mencionar a atuação de outros fatores presentes na trajetória da pessoa e que podem afetar intensamente a vida dos estomizados e violar sua identidade: o afloramento das emoções; a presença da dor que antecede o período da cirurgia e mesmo após sua realização; as alterações no corpo, com importantes reflexos na imagem corporal. O apego às crenças e práticas religiosas, por outro lado, é uma das formas que dão sustentação às pessoas acometidas para enfrentarem a situação.Ao serem confrontadas com o diagnóstico de câncer, as pessoas passam a vivenciar uma série de alterações emocionais, sendo comum entrarem em depressão e negarem-se, muitas vezes, a iniciar ou continuar o tratamento. A presença das emoções pode interferir intensamente no cotidiano e na percepção que a pessoa tem sobre os fatos relacionados à doença e suas conseqüências. As famílias, nessa situação, também experimentam diversos níveis de estresse e de perturbação emocional3,12. Por outro lado, como atitude psicofisiológica, a ansiedade pode favorecer uma adaptação normal da pessoa à sua doença, motivando a si e seus familiares a buscarem medidas de alívio para a situação12.As idéias preconcebidas e falsas sobre o câncer e sobre como vivem as pessoas acometidas pela doença contribuem para a presença da depressão. O medo da morte, a interrupção de planos futuros, as mudanças físicas e psíquicas, as alterações de papéis, do estilo de vida, as preocupações financeiras e legais, são assuntos importantes para qualquer pessoa com câncer512.A dorA presença da dor, aguda ou crônica, é bastante comum na doença oncológica. A dor crônica acomete mais de dois terços dos doentes em fases avançadas. Geralmente, é de intensidade importante, manifesta-se em vários locais, podendo durar várias horas ou ser contínua13. A dor oncológica pode deixar levando à perda de energia, amigos e saúde. Quando presente e não aliviada, a dor agrava essas perdas, dificultando as funções cognitivas, o sono, as atividades sociais e diárias, e atuando como uma ameaça à sua integridade14,15.Embora existam várias definições de dor, as explicações para o fenômeno foram buscadas em vários campos, como na ciência, na religião, nos mitos, nas crenças e valores morais de cada cultura. A "dor e sofrimento eram inseparáveis, socialmente tidos como castigos merecidos pela provocação da cólera dos deuses ou ira divina, e ainda martírios necessários para a purificação e a salvação da alma"15.De alguma forma, tais conceitos fixaram-se no imaginário coletivo, de sorte que a dor é vista, por alguns, como punição, expiação. É por isso que existem pacientes querendo saber o que fizeram de errado para merecer a doença ou a dor. Outros acreditam que é preciso sofrer para crescer e amadurecer, ou suportar a dor como um ato de bravura e coragem15,16,17.Os conceitos advindos do senso comum, como informações erradas e medo da quimioterapia, também interferem na resposta aos tratamentos terapêuticos indicados. A forma como a pessoa avalia e percebe sua doença e seu tratamento reflete como a experiência será vivenciada, fornecendo, assim, subsídios à ação educativa que visa um melhor controle da dor16.A convivência permanente com um determinado tipo de dor é muito angustiante, podendo alterar a história de vida da pessoa, provocar alterações no corpo, no trabalho, na vida pessoal e familiar. Objetivos, planos e expectativas sobre a vida podem ser revisados frente a uma doença com um final imprevisível18.A presença do estomaTambém o desvio do trajeto normal das fezes, exteriorizadas através da colostomia e coletadas por um dispositivo aderido ao abdômen, é uma condição causadora de grande impacto e constrangimento psicológico aos seus portadores. A ele se associam as várias alterações físicas e orgânicas ocorridas no seu corpo, sendo a principal a ausência do controle voluntário sobre a eliminação de fezes, gases e ruídos intestinais19. Desde logo, a alteração da imagem corporal passa a ser um aspecto fundamental a atingir o paciente920.Há um consenso na literatura consultada, quanto aos corpos não serem apenas biológicos, mas, sobretudo, esculpidos pelo cultural e produzidos socialmente, isto é, são constituídos por relações estabelecidas com os outros corpos em sociedade, não havendo como separar o biológico do sócio- comportamental2122,23.Visto como objeto de consumo, o corpo demanda toda uma indústria de recursos tecnológicos e científicos em busca da sua forma perfeita, segundo os padrões de beleza estabelecidos. A imagem corporal geralmente relaciona-se a idéia de juventude, beleza, vigor e, sobretudo, a manutenção de sua integridade física. Aqueles que não se enquadram nesses padrões vivenciam sentimentos de rejeição tendo, muitas vezes, de submeter-se ao isolamento social20,24,25.Para Quintana et al25, existem, simultaneamente, um corpo biológico e um corpo psicológico, sendo que o primeiro só pode ser percebido através das representações que constituem o segundo. É sobre o corpo anatômico que a imagem corporal é construída, sendo que qualquer modificação que o atinja, afetará a imagem corporal que o indivíduo possui de si. Quanto maior a alteração biológica sofrida, maior será a alteração da imagem corporal. Dessa forma, lidar com o corpo implica em construções psíquicas e representações. Quando elas não podem mais ser mantidas, devido a profundas alterações em nível biológico, podem ocorrer sérios desequilíbrios no corpo psicológico.Assim, a pessoa estomizada percebe-se, de um momento para outro, protagonista de uma situação irreversível, com o seu corpo mutilado, contrariando os padrões biológicos, primeiramente, e estéticos, posteriormente. A ruptura do antigo padrão pode levá-la a uma alteração da auto-imagem e do autoconceito, com muitas repercussões em sua vida. De imediato, passará por um processo de aprendizagem, durante o qual essa nova condição deverá ser internalizada, para depois ser expressa no seu cotidiano. Durante o processo em que o doente deverá aprender a lidar com o câncer, a bolsa e o estoma, instala-se uma luta árdua, à custa de cisões interiores e grande investimento psicológico, como o relatado por Sacks26, ao analisar a trajetória de uma pessoa praticamente cega desde sua infância e que aos cinqüenta anos submeteu-se a uma cirurgia de catarata para melhorar sua visão, forçando-a a adaptar-se a uma nova situação considerada, por ela, muito pior que a anterior.Queiroz e Otta23 expressam que as mulheres dão muita importância à beleza e, quando desprovidas de tal atributo, pode causar baixa auto-estima. Sendo o corpo fundamental à aparência feminina, e esta muito importante para sua auto-imagem, pode-se prever como o corpo e a atração física podem influenciar a satisfação integral das mulheres e o quanto elas são afetadas quando sofrem algum tipo de mutilação. Além disso, cada cultura classifica e avalia as diferentes partes do corpo, podendo as associações estabelecidas entre elas apresentar significados positivos ou negativos.Assim, o corpo geralmente não é visto de forma homogênea, mas segmentado e classificado. A sua porção superior está associada às funções mais relevantes, pois aí se localizam a cabeça, que guarda o cérebro e a razão, e a face, com a boca e os olhos, os órgãos mais expressivos para a comunicação humana, marcando a identidade de cada pessoa. Na porção inferior do corpo, localizam-se os órgãos considerados mais animalescos e "indignos" - os reprodutivos, digestores e excretores - que, em geral, ficam escondidos e dissimulados, "assim como as funções que lhes correspondem", visto que nos aproximam da vida animal e da própria natureza. A parte externa do corpo, que é vista por todos, é a que mais sofre "formulação de juízos, estejamos nós em repouso ou em movimento, despidos ou cobertos de vestimentas"23.E, sendo o corpo "um canal para nossas percepções" e para expressar nossos sentimentos, é também o lugar onde a presença da doença, da dor e do sofrimento desvenda uma outra dimensão: temos um corpo e somos um corpo. Ao sofrer uma alteração física visível e significativa, esse corpo pode transformar-se em outro corpo, mutilado, doente, privado de sua integridade, dinamismo e autonomia, o que acaba gerando conflitos e desequilíbrio interiores. A insatisfação manifestada com o corpo alterado conduz à diminuição da auto-estima e a um sentimento de auto-exclusão27.As dificuldades sexuais relatadas pelas pessoas são decorrentes das alterações da imagem corporal, mas possuem dois importantes componentes: um psicológico e o outro derivado das implicações físicas da cirurgia que podem levar a diminuição ou perda da libido, entre outras disfunções sexuais20.Assim, "uma amputação transforma o corpo "inteiro", em corpo deficiente", modificando a imagem que o apresenta para o mundo e refletindo sua deformidade. A pessoa pode sentir-se desprestigiada diante da sociedade passando a ser vista como incapacitada e dependente, e a modificação ocorrida pode alterar significativamente sua vida e, assim, o modo como se relaciona com o mundo a sua volta2728.A religiãoNesse momento conflitante de sua vida a religião pode auxiliar as pessoas a enfrentarem e entenderem a situação. Vários estudos demonstram a importância da religião na interpretação e no tratamento da doença, havendo pouca contestação a respeito do potencial efeito terapêutico da fé religiosa e das convicções espirituais sobre a pessoa que se encontra em uma situação aflitiva29,30,31,32,33. Há uma interligação entre as práticas de saúde e de religiosidade, especialmente no universo simbólico, que interferem sobremaneira no modo de ser e viver das pessoas e, conseqüentemente, sobre suas concepções de saúde e doença20,29. A religião, através de sua representação simbólica, fala da vida e para além da vida, enviando mensagens de salvação que procuram responder as grandes perguntas do ser humano sobre sofrimento, culpa, perdão, vida e morte, entre outras. É, assim, "uma realidade social existencial básica", que fornece o sentido e o não- sentido da vida e, no presente, o sentido da doença, do sofrimento e da saúde. Desse modo, as religiões procuram "salvar" o ser humano na sua totalidade física, psicológica e espiritual, não separando nem isolando a salvação, dos contextos concretos da existência34.Nessas circunstâncias, a doença pode destruir a integridade do corpo, mas a dor e o sofrimento podem ser fatores desintegrantes da unidade da pessoa. Em presença de um sofrimento muito intenso, pode haver o sentimento de destruição de si mesma e, para reduzir essa sensação, é necessário afastar a ameaça ou dar um sentido ou um significado ao sofrimento. "A transcendência é, provavelmente, a forma mais poderosa na qual alguém pode ter sua integridade restaurada, após ter sofrido a desintegração da personalidade"35.Conforme Teixeira32, o interesse pela religião e a fé em Deus aumentam à medida que as pessoas envelhecem, através da participação em atos religiosos e da leitura da bíblia, sendo estas consideradas medidas gerais e positivas de ajuste. A religiosidade também pode ser vista como uma estratégia de enfrentamento, que fornece alívio e conforto às pessoas idosas portadoras de câncer, pois permite encontrar significado e dar coerência ao mundo.Nesse ponto, diferencia-se a religião da espiritualidade. A religião codifica uma experiência de Deus, através de um sistema de poder religioso, doutrinário, moral e ritual, ao longo de sua expressão histórica34. Ao passo que a espiritualidade é aquilo que permite à pessoa vivenciar uma experiência profunda e inovadora, com um sentido transcendente em sua vida, ou seja, é uma construção que abrange sentidos e/ou conceitos de fé. A fé é uma crença numa força transcendente, que não precisa, necessariamente, ser Deus, nem estar vinculada à participação em rituais de uma determinada religião. A fé percebe essa força como externa à psique humana ou internalizada, a qual fornece os elementos essenciais da experiência espiritual, vinculando-se ao conceito de sentido. A espiritualidade é, então, uma construção formada por fé e sentido33.O componente "fé" apresenta-se, na maioria das vezes, associado à religião e às crenças religiosas. Já o componente sentido representa um conceito mais universal, que pode estar presente tanto em pessoas que se identificam com a religião como naquelas que não se identificam. Entretanto, estudos recentes demonstram que há uma relação positiva importante entre as crenças religiosas e a construção do sentido de um sofrimento causado por uma doença grave, fazendo com que haja uma melhor aceitação do problema. Usar a religião, a fé, as crendices e rituais religiosos (oração, promessa, crença na vida depois da morte) significa uma tentativa, um esforço de lidar com as preocupações espirituais ou com o sofrimento, dando a ele um sentido compreensível do "por que eu?"33.Assim, o uso da religião, como forma de tratar ou curar uma doença, incide sobre as várias dimensões que constituem o homem (social, biológica e psicológica) e, ao ser capaz de oferecer uma interpretação da doença, consegue inseri-la, tanto num novo contexto de relacionamentos, como num contexto sociocultural maior. Essa interpretação consegue organizar os estados de confusão e desordenamento que a experiência aflitiva cria, em um todo ordenado e coerente, e não simplesmente relacionado a uma causa exterior. As terapias religiosas, através de seus rituais específicos, possibilitam uma reorientação comportamental do ser humano envolvido na passagem da saúde à doença. Assim, o ritual possui um papel transformador, pois, ao "manipular símbolos em um contexto extracotidiano, carregado de emoção", fornece a seus participantes uma nova percepção sobre o universo circundante, e sua particular posição nesse universo30.Considerações FinaisQuando o indivíduo se dá conta da presença inevitável e real da finitude de sua vida, surge a questão de como lidar com essa ruptura, que se posiciona entre o tempo planejado e a incerteza do tempo a ser vivido. A tensão criada poderá ser resolvida somente se ele souber de suas reais condições de saúde. Se desconhecer o seu diagnóstico ou escolher negá-lo para não enfrentar a situação, não lhe será possível realizar novos projetos, para o tempo de vida restante, seja ele qual for3.Desistir de lutar contra o destino, deixando que siga seu livre curso, e manter-se profundamente apático, são atitudes que impedem qualquer iniciativa e tomada de decisão. Há sempre inúmeras possibilidades de dar sentido à existência. E elas surgem mesmo que a inevitabilidade do destino imponha ao doente grande sofrimento31.Assim, são as atitudes manifestadas frente ao problema que configurarão o seu futuro. A forma como assume essa luta pode tornar-se uma realização única e singular, já que ninguém tem o poder de assumi-la ou substituí-lo na empreitada. O doente é também responsável por sua vida e pela continuidade da mesma. Ao dar-se conta dessa responsabilidade cabe a ele a escolha de reagir ou não frente aos determinantes que surgem. Autodeterminar-se e decidir como será sua existência no momento seguinte será sempre uma opção intransferível31.Entretanto, os cuidados prestados pelos profissionais da área da saúde às pessoas estomizadas, especialmente os enfermeiros, são fundamentais, mas exigem conhecimentos técnicos e científicos apropriados, pois necessitam capacitá-los ao convívio com o estoma para sempre.

Downloads

Não há dados estatísticos.

Referências

Remem RN. Uma maneira saudável de ter uma doença. In: O paciente como ser humano. São Paulo: Summus, 1993. Cap. 3 p. 99-127.

Sontag, S. A doença como metáfora. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.

Nascimento-Schulze, CM. (org.). Dimensões da dor no câncer - reflexões sobre o cuidado interdisciplinar e um novo paradigma da saúde. São Paulo: Robe Editorial, 1997.

Adam P, Herzlich C, editors. A experiência da doença em todos os lugares da vida social. In: Sociologia da doença e da medicina. Bauru: EDUSC, 2001. Cap.7 p. 121-37

Wanderbroocke ACNS. Aspectos emocionais do paciente ostomizado por câncer - uma opção pela vida. Cogitare Enferm 1998; 3 (1): 21-3.

Santos VLCG. The cancer patient: reflections between rehabilitation and quality of life. World Counc Enterostom Ther J 2000; 20 (3): 30-8.

Michelone APC, Santos, VLCG. Qualidade de vida de adultos com câncer colorretal com e sem ostomia. Rev. Latino-Am. Enfermagem, Dez 2004, vol.12, no.6, p.875-83.

Silva AL, Shimizu HE. A relevância da rede de apoio ao estomizado. Rev Bras Enferm 2007, mai-jun; 60(3):307-11.

Sampaio FAA, Aquino OS, Araújo TL, Galvão MTG. Assistência de enfermagem a paciente com colostomia: aplicação da teoria de Orem. Acta Paul Enferm 2008, 21(1):94-100.

Borba SRC. Dificuldades para o tratamento da dor do câncer no Brasil. In: Nascimento-Schulze, CM. (org.). Dimensões da dor no câncer reflexões sobre o cuidado interdisciplinar e um novo paradigma da saúde. São Paulo: Robe Editorial, 1997.

Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed, Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1988.

Balone GJ. Câncer e ansiedade. Câncer e emoções. Depressão no paciente com câncer. Disfunção sexual nos pacientes com câncer. 2001. Disponível em: Acesso em 05 fev. 2004.

Pimenta CAM. Dor oncológica: bases para avaliação e tratamento. In: Pessini L, Bertachini L. (orgs.) Humanização e cuidados paliativos. São Paulo: Edições Loyola, 2004. Parte 15 p. 241-262.

Schisler EL. O conceito de dor total no câncer. In: Nascimento-Schulze CM. (org.). Dimensões da dor no câncer - reflexões sobre o cuidado interdisciplinar e um novo paradigma da saúde. São Paulo: Robe Editorial, 1997. Cap. 3 p.49-62.

Miceli AVP. Dor crônica e subjetividade em oncologia. Rev Bras Canc 2002; 48(3): 363-73.

Pimenta CA, Portnoi AG. Dor e cultura. In: Carvalho MMMJ. (org.). Dor: um estudo multidisciplinar. São Paulo: Summus, 1999. Cap. 7 p. 159-73.

Morris DB. The meanings of pain. In: The culture of pain. Los Angeles: University of California Press, 1991. p. 31-56.

Garro LC. Chronic ilness and the construction of narratives. In: Good MD et al. Pain as a human experience: an anthropological perspective. Los Angeles; 1994. Cap. 5 p. 100-37.

Santos VLCG. Representações do corpo e a ostomia. Estigma. In: Santos, VLCG, Cesaretti IUR. Assistência em estomaterapia: cuidando do ostomizado. Atheneu, 2000. Cap. 7, p. 89-102.

Silva AL, Shimizu HE. O significado da mudança no modo de vida da pessoa com estomia intestinal definitiva. Rev Latino americana Enfermagem 2006, jul-ago, 14(4): 483-90.

Bruhns HT. Corpos femininos na relação com a cultura. In: Romero E. (org.). Corpo, mulher e sociedade. Campinas: Papirus,1995. Parte 2 p. 71- 97.

Vilaça N, Góes F. Um metacorpo? In: Em nome do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. Cap. 8 p. 169-92.

Queiroz RS, Otta E. A beleza em foco: condicionantes culturais e psicobiológicos na definição da estética cultural. In: Queiroz RS (editor). O corpo do brasileiro: estudos de estética e beleza. São Paulo: Editora Senac, 2000. p 15-66.

Lucero NAA. O corpo redescoberto. In: Romero E. (org.). Corpo, mulher e sociedade. Campinas: Papirus, 1995. Parte 1 p. 43-53.

Quintana AM, Santos LHR, Russowisky ILT, Wolff LR. Negação e estigma em pacientes com câncer de mama. Rev. Bras. Canc 1999; 45(4): 45-52.

Sacks O. Ver e não ver. Um antropólogo em Marte: sete histórias paradoxais. Companhia das Letras, 1995. Cap 4 p. 123-64.

Souza RHS, Mantovani MF, Lenardt MH. Significados do corpo: reflexão teórica. Cogitare Enferm 2001; 6 (2): 25-30.

Barnabé NC, Del"Acqua MCQ. Estratégias de enfrentamento (coping) de pessoas ostomizadas. Rev Latino americana Enfermagem 2008, jul- ago, 16(4).

Dalbosco CA, Mühl EH. Religiosidade & Saúde popular: Introdução: aspectos históricos, metodológicos e teóricos. Coleção Cultura e Religiosidade Popular. Gráfica Ed. Universidade de Passo Fundo, 1991. Parte I p. 24-32.

Rabelo MCN, Alves PCB, Souza IMA. Experiência de doença e narrativa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999.

Frankl VE. Em busca de sentido. 17ª ed. Petrópolis: Editora Sinodal, 2003.

Teixeira JJV. O significado da fé religiosa na vida do paciente idoso com câncer e na rotina médica - os olhares do sujeito coletivo médico. In: Lefèvre F, Lefèvre AMC. O discurso do sujeito coletivo: um novo enfoque em pesquisas qualitativas (desdobramentos). Caxias do Sul, RS: EDUCS, 2003. p. 61-75.

Breitbart W. Espiritualidade e sentido nos cuidados paliativos. In: Pessini L, Bertachini L. (orgs.) Humanização e cuidados paliativos. São Paulo: Edições Loyola, 2004. Parte 13 p. 209-27.

Pessini L. Saúde, religião e espiritualidade. (Editorial). O Mundo da Saúde 2000; 24 (6): 435-6.

Pessini L. Humanização da dor e sofrimento humanos no contexto hospitalar. Revista Caminhando com o Itepa. Bioética. Ano XIX, 2002; p. 67-92.

Publicado

2008-09-01

Como Citar

1.
Petuco VM, Martins CL. Revisão. ESTIMA [Internet]. 1º de setembro de 2008 [citado 22º de novembro de 2024];6(3). Disponível em: https://www.revistaestima.com.br/estima/article/view/237

Edição

Seção

Artigos

Artigos mais lidos pelo mesmo(s) autor(es)